quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Maria e as maçãs


Eis uma versão do problema retirado de um aritmética portuguesa datada de 1555,Tratado da Arte da Aritmética, de Bento Fernandes. 

O pomar de maçãs com três guardas

Um gentil-homem anda de amores com uma dama e não pode haver dela seu desejo. E a dama lhe pede 9 maçãs do jardim del-Rei e que aceitará o seu serviço. E o gentil homem se foi ao jardim e achou nele 3 portas e em cada porta está um porteiro e o primeiro porteiro lhe disse que entrasse, porém, que lhe havia de dar a metade de todas as maçãs que trouxesse e mais 2 maçãs. O segundo porteiro lhe disse que entrasse e que lhe havia de dar a metade das maçãs que trouxesse e mais 3 maçãs. O terceiro porteiro lhe disse também que entrasse e que lhe havia de dar a metade das maçãs que trouxesse menos 4 maçãs.
Pergunto: quantas maçãs há-de trazer este gentil-homem do jardim para que lhe fiquem as ditas 9 maçãs, nem mais nem menos, dando a cada porteiro segundo o que cada um lhe pediu?
(Bento Fernandes, fol 103 e 103 v)

Outras versões do problema

Uma outra versão do problema, muito comum na Idade Medieval e nas aritméticas  europeias dos séculos XV e XVI é a de um mercador que vai de feira em feira, percorrendo três feiras onde, de cada vez, duplica o seu dinheiro e gasta parte do seu dinheiro. Eis uma das duas versões, com este contexto, do livro do português Gaspar Nicolas (1519): 

A viagem do mercador

Um homem foi de Lisboa a Belém e levava dinheiro, não sabemos quanto, e na venda de Santos dobrou o dinheiro que levava e gastou 10 e ficou-lhe ainda dinheiro e em Alcântara dobrou o dinheiro que levava  e gastou 10 e ficou-lhe ainda dinheiro, e em Belém dobrou o dinheiro que levava e gastou 12 e ficaram-lhe 3 reais.
Ora eu pergunto: quanto dinheiro levava este homem?
(Gaspar Nicolas, fol 30)
Neste mesmo livro encontra-se ainda outra versão do problema, com um contexto diferente do anterior:
Digo que um homem entrou numa Igreja e não sabemos quanto dinheiro levava. Disse ao primeiro santo que lhe dobrasse o dinheiro que levava e lhe daria 12 reais e o santo lho dobrou. Deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda dinheiro. E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou e que lhe daria 12 reais. O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda dinheiro. E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou e que lhe daria 12 reais. O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e não lhe ficou nada.
Ora eu pergunto: quanto dinheiro levava este homem?
(Gaspar Nicolas, fol 29)

A primeira versão do problema

A primeira versão deste problema parece ter aparecido na China e relaciona-se com tributos alfandegários. Dois problemas sobre tributos alfandegários pagos na passagens por 3 alfândegas e por 5 alfândegas aparecem  no capítulo VI do livro Nove capítulos da Arte Matemática, de cerca do século I a.C. 


Problema 27Um homem carrega arroz numa viagem. Passa por três alfândegas. Na primeira dá 1/3 do seu arroz, na segunda 1/5 do que sobrou, e na terceira, 1/7 do que sobrou. Depois de passar pelas três alfândegas, sobraram-lhe 5 dou de arroz. Que quantidade de arroz é que ele tinha ao início?  
Solução:10 dou 9+3/8 sheng 
(citado por Victor Katz)
Problema 28Uma pessoa transporta ouro por cinco alfândegas. Na primeira alfândega paga um imposto de uma parte em 2. Na segunda alfândega, uma parte em 3; na terceira, uma parte em 4; na quarta, uma parte em 5; e na quinta, uma parte em 6. Suponha que a taxa total destas cinco alfândegas é apenas 1 jin. Diz: que quantidade de ouro carregava inicialmente?
Solução:jin 3 liang 4+4/5 zhu 
Nota:jin = 16 liang, 1 liang = 24 zhu 

O problema nas diferentes civilizações

  Grécia 

O papiro de Akhmin (cerca do século VI-XI), contém uma versão deste problema sobre um tesouro.
  Índia 
O matemático hindu Mahavari, do século IX, no seu tratado Ganita-Sâra-Sangrahaapresenta também uma versão deste problema. 
De uma colecção de mangas, o rei tirou 1/6, a rainha 1/5 do restante, e as três princesas principais ¼, 1/3 e ½ do resto sucessivo, e a criança mais pequena tirou as 3 mangas que sobravam. Ó tu que és inteligente em problema com fracções, indica a medida da colecção de mangas.  
Mais tarde, no século XII, Bhaskara II, no seu livro Lilavati, apresenta uma versão semelhante com um viajante numa peregrinação (verso 58). 
   Arménia
O matemático arménio, Anania de Shirak (século VII), apresenta o seguinte problema, onde um mercador passa por 3 cidades:
Um mercador passa por três cidades. Na primeira cidade paga metade e um terço dos seus bens de taxa. Na segunda cidade paga metade e um terço do que sobra dos seus bens. Na terceira cidade paga, de novo, metade e um terço dos seus bens. Por fim sobram-lhe 11 moedas. Quanto são os seus bens originais.
                (citado por Shen Kangshen et al.)
   Europa
Maior parte das aritméticas europeias medievais e da época renascentista e mesmo nos manuais escolares do século XX continham versões destes problema.
Tais como:
  • Abraham ben Erza (matemático judeu, que viveu em Espanha, do século XII);
  • Fibonacci (matemático italiano do século XII);
  • Chuquet (matemático francês, do século XV);
  • Juan Pérez de Moya (matemático espanhol, do século XVI);
  • Tunstall (matemático inglês, do século XVI);
  • Jerónimo Cortés (matemático espanhol do século XVII).

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