sábado, 4 de janeiro de 2014

Regra de três simples

A regra de três (ou de três simples) tem origem na Índia, alguns autores vêem-na descrita, pelo menos rudimentarmente, nos versos hindus Vedanga  Jyotisa, para uns do período de 1370 - 1150 a.C., para outros de 500 a.C. (Sarma, 2002):


O resultado conhecido deve ser multiplicado pela quantidade requerida e dividido pela quantidade para a qual o resultado conhecido é dado. 

No entanto, o seu desenvolvimento, na Índia, só se dá a partir do século V d.C.

A regra era conhecida na China no século I d.C. e foi introduzida no mundo árabe por volta do século VIII. Na Europa da Idade Média era conhecida por regra de ouro, onde, ela ou as regras de ela derivadas, foram utilizadas para resolver todo o tipo de problemas derivados da ac
tividade comercial. Era de tal forma importante, que todos os mercadores da alta Idade Média a utilizavam e ocupava 20% dos livros de aritmética dos mercadores de então (Smith, 1926, 1958).

O facto de ela ter sido pela primeira vez enunciada na Índia não quer dizer que outras civilizações, como a Egípcia ou a Babilónica não a tenham utilizado na resolução de problemas, mas a sua matemática não envolvia a explicitação de regras apenas a resolução de problemas sem nenhuma explicação teórica ou enunciação de processos para os resolver.


A regra de três na China

A regra de três tem um papel importante na matemática chinesa, ela aparece pela primeira vez no século I d.C., no texto Nove Capítulos da Arte Matemática, no capítulo 2, com a designação de regra de Jinyou, que significa literalmente "agora dados". A regra é descrita da seguinte forma:


Toma o número dado para multiplicar pela razão pedida. O produto é o dividendo. A razão dada é o divisor. Divida.


A regra de três na Índia


Não se sabe ao certo se os conhecimentos chineses sobre a regra de três simples viajaram, ou não, até à Índia no início da era cristã, o que é certo é que ela foi desenvolvida e utilizada pelos matemáticos hindus cerca de quase um milénio após ter aparecido pela primeira vez nos Vedanga  Jyotisa. 
No livro Aryabhatiya, do ano 499, Aryabhata escreveu sobre a regra de três, mas também sobre a regra de cinco, de sete, e outros casos especiais da regra de três (Sarma, 2002). Aryabhata descreve a regra de três, no verso 26, da forma seguinte:


Agora tendo multiplicado a quantidade conhecida como fruto, ligada pela regra de três (trairasika), pela quantidade conhecida que se requer, o resultado obtido deve ser dividido pelo argumento. [O que se obtém] desta [operação] é o fruto correspondente ao que se requer (Sarma, 2002). 

Desta descrição da regra conclui-se que o seu nome vem originalmente da Índia. A designação da regra: Traisasika, fornecida por Aryabatha, significa aquilo que consiste em três quantidades numéricas ou termos (Bronkhorst, 2001; Sarma, 2002).
No comentário do livro de Aryabhata, Bhaskara (c. 600 - c. 680) refere que a primeira coisa a fazer, antes de efectuar os cálculos, é colocar por ordem as três quantidades:



Ao resolver problemas relacionados com a Regra de Três, quando os números são escritos, o sábio deve saber que as duas quantidades iguais devem ser escritas em primeiro e em último lugar, e a quantidade diferente no meio.

Desta regra estabelecida por Bhaskara para a escrita das quantidades e da própria regra de três enunciada por Aryabhata pode-se deduzir o significado da regra de três para os autores hindus.
A regra consiste em alinhar sequencialmente as três quantidades dadas (A-B-C) e depois proceder inversamente, multiplicando o último pelo termo do meio e dividindo pelo primeiro (C x B : A) (Sarma, 2002).
Seria mais lógico começar por dividir B por A de forma a obter a razão unitária, mas tal poderia conduzir a uma fração. Ora o cálculo com frações é mais complexo do que o cálculo com números inteiros, e ao procederem desta forma, ou seja, ao multiplicarem primeiro, a hipóteses de se efectuarem cálculos apenas com números inteiros aumenta.
Vários autores hindus, além de Aryabhata e Bhaskara, referem, nos seus trabalhos, a regra de três e o procedimento para colocar os números sequencialmente, tais como Brahmagupta (c. 598);  Sridhara (c. 750); Mahavıra (c. 800e Bhaskara II (c. 1114).
Por exemplo, Sridhara, no livro Patiganita, refere exactamente a regra, tal como foi explicitada:
Na [resolução de problemas através da] Regra de Três, o argumento e o que se requer, que são do mesmo tipo, devem ser escritos no primeiro e último lugar; o fruto, que é de tipo diferente, deve ser escrito no meio. [Depois de isto ser feito], a [quantidade do meio] multiplicada pela última quantidade deve ser dividida pela primeira quantidade.

A regra de três e a teoria das proporções

A Regra de Três tal como descrita pelos matemáticos hindus não envolve qualquer tipo de conhecimento da teoria das proporções, mas de facto a regra deriva desta teoria. Smith (1958) afirma que a regra de três era concebida sem qualquer sustentação teórica e que apenas mais tarde, por volta do século XVII os autores europeus passam a relacionar a regra de três com a proporção, quando os matemáticos começaram a dar alguma atenção à aritmética comercial. 
Na Índia, pelo menos na visão de Sarma (2002), tal não parece ter sido o caso. Os matemáticos hindus parece terem compreendido que a regra de três era um caso de proporção. Sarma fornece vários argumentos para esta ideia, por um lado no comentário que Bhaskara faz da regra, enunciada por Aryabhata, afirma:

Aqui temos a proposição lógica - se por umas tantas moedas algumas coisas são obtidas, por tantas moedas quantas coisas podem ser obtidas?

Outro dos argumentos fornecidos por Sarma é o facto de Bhattotpala, astrónomo hindu do século X, ter afirmado que as proporções são denominadas a matemática da Regra de Três.
Na resolução de problemas os matemáticos hindus tinham a preocupação de explicar a lógica que estava por detrás da aplicação da regra de três.


A regra de três entre os Árabes 


Não se sabe se a regra de três foi transmitida aos árabes via os hindus, tal como aconteceu com muitos outros conhecimentos matemáticos.
Parece que não tinham, tal como os Hindus, uma designação especial para a regra. O matemático árabe Al-Karajy (c.953-c.1029) refere-se a ela simplesmente por "multiplicação e divisão" (Horup, 2007), mas parece que construíram a regra com base na teoria das proporções dos Elementos de Euclides 
(Horup, 2012).
Al-Khwarizmi (c. 780- c. 850) refere que os problemas que envolvem transações comerciais, compreendem sempre duas noções e quatro números: medida e preço e quantidade e soma (Rosen, 1986). Os quatro números que refere estão em proporção,
"o número que expressa a medida é inversamente proporcionado ao número que expressa a soma e o número do preço inversamente proporcionado ao da quantidade. Três destes números são sempre conhecidos, e isto está implícito quando uma pessoa diz quanto? E este é o objecto da questão....Depois multiplica estes dois números em proporção um pelo outro e divide pelo terceiro, o que lhe está proporcionado com este é desconhecido. O quociente desta divisão é o número desconhecido, ...e é inversamente proporcionado ao divisor".
(Rosen, 1986, p. 68).

Pode-se resumidamente transcrever para linguagem simbólica a descrição da regra de al-Khwarizmi, sendo a, b e A, B tais que a : b = A : B então a = bA/B e b = aB/A. 

A grande diferença da regra de al-Kharizmi para a regra tal como descrita pelos matemáticos Hindus é que neste caso não há qualquer dúvida que este matemático compreendia a necessidade de as quantidades envolvidas nos problemas terem de estar em proporção, caso contrário a regra não se poderia aplicar.

Vários matemáticos árabes referem-se à regra sem nunca a designarem, fazendo ênfase na questão da  semelhança das magnitudes duas a duas. A seguinte é a versão de Al-Karajy, citada por Horup, 2007:


Descobres a quantidade desconhecida multiplicando uma das magnitudes conhecidas, por exemplo a soma ou a quantidade, pela que não lhe é semelhante, nomeadamente pela medida ou pelo preço, e dividindo o resultado pela magnitude do mesmo tipo.

Ibn al-Banna, matemático árabe do século XIII, também enfatiza a diferença das magnitude, mas não refere que a terceira é "do mesmo tipo".
Al-Qalasadi, matemático árabe do século XV, refere-se do seguinte modo relativamente à regra, fazendo uma referência nítida à proporção, mas sem comentar a semelhança ou não das magnitudes:



Se um dos extremos é desconhecido, descobre-se o produto dos meios e divide-se o resultado pelo extremo conhecido. E similarmente, se um dos meios é desconhecido, multiplica-se os extremos e divide-se o resultado a que se chegou pelo meio que é conhecido.
(Horup, 2007, p.6)

Não parece que os textos árabes discutam a versão hindu de colocar os números por ordem (Sarma, 2002), mas tal parece não ter sido necessário, uma vez que todos discutiam a questão de os números estarem em proporção, o que automaticamente os colocavam na ordem da respectiva proporção (a : b :: A : B).
Alguns autores árabes referem-se à teoria da proporção de Euclides, por vezes integrando-a com a apresentação da regra de três outras vezes mantendo-a como um tópico separado (Horup, 2012).
Ibn al-Banna, matemático árabe do século XIII, integra a regra na apresentação de proporções:

Os quatro números proporcionais são de tal modo que o primeiro está para o segundo como o terceiro está para o quarto. O produto do primeiro com o quarto é igual ao produto do segundo com o terceiro.
Ao multiplicar o primeiro pela quarto e dividindo o produto pelo segundo, obtém-se o terceiro. [...]
Qualquer que seja desconhecido entre estes números, pode ser obtido por este procedimento a partir dos outros três números conhecidos. O método consiste em multiplicar o número dado isolado, diferente dos outros dois, pelo que está em contrapartida com o que se ignora, e dividir pelo terceiro número conhecido. O resultado é o desconhecido.  
 (Horup, 2012, p. 10)

Al-Biruni, matemático árabe do século X-XI, que se sabe ter viajado pela Índia, arranjava os termos da proporção verticalmente (Sarma, 2002), ou seja,  de uma forma era muito semelhante ao que fazemos hoje em dia, mas que nada tinha a ver com a forma como os matemáticos Hindus faziam.



A regra de três na Europa


Referências bibliográficas
Bronkhorst, J. (2001). Panini and Euclid: Reflections on Indian geometry, Journal of Indian Philosophy, 29, 43-80.
Horup, J. (2007). Further questions to the historiography of Arabic (but not only Arabic) mathematics from the perspective of Romance abbacus mathematics: Contribution to the "9ième Colloque Maghrébin sur l'Histoire des Mathématiques Arabes, Tipaza, 12-13-14 Mai 2007.
Horup, J. (2012). Sanskrit-Prakrit interaction in elementary mathematics as reflected in arabic and Italian formulations o f the rule o f three – and something more on the rule elsewhereMax-Planck-Inst. für Wissenschaftsgeschichte
Rosen, F. (1986) The Algebra of Mohammed ben Musa, Georg Olms Verlag.
Sarma, S. (2002). Rule of Three and its Variations in India. in: Yvonne Dold-Samplonius et al. (ed), From China to Paris : 2000 Years Transmission of Mathematical Ideas, (pp. 133-156), Stuttgart: Steiner Verlag.
Smith, D. (1926). The first great commercial arithmetic, Isis, 8 (1), 41-49.


Página criada em 02-03-2008                                                                                                                           história da matemática

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Liu Hui e o Manual Aritmético da Ilha no Mar (Haidao Suanjing)


Medição da altura de uma padoga, pelo método de Liu Hui, ilustração num livro do século XIII
Praticamente não se sabe nada sobre a vida do matemático chinês Liu Hiu (c. 220 a c.280), a não ser que era um oficial no período do rei Wei.

                                                                                                                       Selo editado na China, 2002

Com o objetivo de determinar um valor aproximado de π Liu utilizou um método de divisão círculo: usando um círculo inscreveu sistematicamente polígonos regulares de área calculável, inscrevendo até ao polígono regular com 192 lados, conseguiu determinar 3,141024 como valor aproximado de π. Liu Hui percebeu que o processo de divisão círculo que utilizado era teoricamente infinito, mas que se aproximava, na realidade, de um limite. 
Liu estendeu esse conceito de limites e indivisíveis, usando técnicas de dissecação para investigar e verificar fórmulas, já existentes, para o cálculo de volumes e áreas. Em particular, fez um estudo sobre o volume da esfera utilizando métodos teóricos que mais tarde viria a ser conhecido como o princípio de Cavalieri.
Ilustração de Tai Chen da explicação de Liu Hui da determinação de uma aproximação do número π 
(Selo editado pela Micronésia, 1999)

Liu Hui escreveu no ano de 263 d.C., um comentário a livro "Nove Capítulos da Arte Matemática" onde fornecia a justificação matemática para as regras e soluções dos Nove Capítulos.Ao seu comentário acrescentou um apêndice ao último capítulo do texto, contendo nove problemas.

Os nove problemas são todos sobre a medição de distâncias, de acordo com os seguintes temas:1 - Problema da ilha do mar.2 - Problema da altura de um pinheiro.3 - Problema da dimensão da distante cidade amuralhada.4 - Problema da profundidade de uma ravina5 - Problema da altura de um edifício visto de cima de um monte.
6 - Problema da largura da foz de um rio.
7 - Problema da profundidade de um lago.
8 - Problema da largura de um rio.
9 - Problema do tamanho de um cidade vista de um ponto mais alto.
6 - Problema da largura da foz de um rio.7 - Problema da profundidade de um lago.8 - Problema da largura de um rio.9 - Problema do tamanho de um cidade vista de um ponto mais alto.


Problema 1
Com o objectivo de medir a altura de uma ilha, coloque duas estacas verticais ao chão e de igual altura, 3 zhang, sendo a distância entre ambas de 1000 bu. Assuma que as duas estacas estão alinhadas com a ilha. Afaste-se 123 bu da primeira estaca (a que está mais perto da ilha), e observe o pico da ilha ao nível do chão; parece que a parte de cima da primeira estaca coincide com o pico. Afaste-se 127 bu da segunda estaca e observe o pico da ilha ao nível do chão, de novo; a parte de cima da segunda estaca coincide com o pico. Qual é a altura da ilha e a que distância está da primeira estaca?
Solução: A altura da ilha é 4 li e 55 bu; está a 102 li e 150 bu da primeira estaca. 

 Edição de 1726


 Problema 2
Agora mede um pinheiro de altura desconhecida numa montanha. Coloque duas estacas do mesmo comprimento, 2 zhang, de tal forma que a distância entre as duas seja 50 bu e que estão alinhadas com o pinheiro. Recue 7 bu e 4 chi da primeira estaca [a que está mais perto do pinheiro]. Observe o topo do pinheiro ao nível do chão e descobre que o topo do pinheiro coincide  o topo da estaca.; observe de novo a base do pinheiro e descobre que a base está a 2 chi e 8 cun do topo da estaca. De novo, recue 8bu 5 chi da estaca da frente. Observe o topo do pinheiro ao nível do chão e também descobre que coincide com o topo da estaca. Diz: qual é a altura do pinheiro e a distância entre a montanha e a estaca da frente
Solução: A altura do pinheiro é 12 zhang, 2 chi e 8 cun. A montanha está a 1 li e 28+4/7 bu da primeira estaca. 

(Citados por Shen Kangshen et al.)



 Problema 3
Agora, olhando para o sul numa praça de uma cidade de tamanho desconhecido, ergue duas estacas afastadas, na direção leste-oeste, de 6 zhang unidas por uma corda, ao nível dos olhos. Faça com que a estaca oriental esteja alinhada com os cantos Sudeste e Nordeste da cidade. Mova-se bu destaca do norte observe o canto noroeste da cidade, a linha de observação intercepta a corda em um ponto 2 zhang chi 6 1/2 cun da sua extremidade oriental. Mais uma vez, mova-se para trás no sentido do norte 13 bu chi e observe o canto noroeste da cidade, a estaca coincide com a estaca ocidental. Qual é o (comprimento do lado] da cidade quadrada, e quão longe está a cidade da estaca?
Solução:  A medida do lado da cidade quadrada é 3 li 43 3/4 bu. 


Problema 4
Agora 
 com a finalidade de olhar o fundo de uma  ravina, coloca um esquadro de um carpinteiro de altura 6 chi no extremo da ravina. Observa o fundo da ravinada ponta do esquadro de carpinteiro, a linha de observação interseta a base em um ponto a 9 chi e 1 cun do canto do esquadro. Coloca outro esquadro de carpinteiro semelhante ao primeiro: a distância entre as bases dos [dois] esquadrados é de 3 chang. Observa do fundo da ravina a partir da ponta do esquadrado mais alto, a linha de observação interseta a base a um ponto 8 qui 5 cun [a partir do canto do esquadrado]. Quão profundo é a ravina? 
Solução: 41 chang 9 chi.

(Citados por Swetz, 1992)


Problema 5
Agora mede um edifício a nível do chão de uma montanha. Coloca um gnómon na montanha, cujo gou [cateto menor] tem de altura 6 chi; avista do topo do gou para baixo, para a base do edifício. A linha de visão corta o gu [cateto maior]  inferior a uma altura de 1 zhang e 2 chi. Coloca outro gnómon [do mesmo tamanho] 3 zhang acima [do primeiro]. A linha de visão do topo do goupara a base do edifício corta o gu superior a uma altura de 1 zhang, 1 chi  e 4 cun. Depois, coloca uma estaca no ponto de convergência do gu. A linha de visão do topo do gou para o topo do edifício corta a estaca pequena a uma altura de 8 cun. Diz: Qual é a altura do edifício. 
Solução: zhang.

(Citados por Shen Kangshen et al.)

Problema 7
Agora mede um lago límpido com uma pedra branca no fundo. Numa margem coloca um gnómon, cujogou [cateto menor] tem 3 chi de altura; avista do topo do gou para a margem oposta. A linha de visão para a pedra corta o gu [cateto maior]  inferior a uma comprimento de 2 chi e 4 cun. Depois, coloca outro gnómon 4 chi acima do primeiro. Avista outra vez para baixo do topo do gou  para a outra margem, e a linha de visão corta o gu superior a um comprimento de 4 chi. A linha de visão para a pedra corta o gu superior em 2 chi  e 2 cun. Diz: Qual é a profundidade do lago?
Solução: zhang e 2 chi .


(Citado por Dauben)
 Página criada em 2002                           Última actualização 29-12-2013